Capítulo III

Finalmente o avião pousou em Berlim. A operação de desembarque do avião já havia começado e os passageiros estavam se levantando, pegando suas bagagens de mão e colocando-se em fila no corredor. Todos esperando a porta abrir para, finalmente, pisar em solo alemão.
Lorenzo não tinha bagagem de mão, exceto pela sua blusa de lã que vestia ao sair de casa, mas agora já não a usava. Ainda estava sentado, esperando toda aquela gente sair primeiro, quando olhou pela janela e viu que o sol brilhava lá fora. O piloto dissera que o clima estava agradável, mas Lorenzo não lembrava a temperatura exata. 21ºC, 22ºC graus? Ah, que diferença faria?
A senhora à sua esquerda passou, pedindo licença apenas com um gesto. Ele notou que nas mãos dela, ainda estava o livro que lia. Lorenzo espichou um pouco o pescoço para ler seu título, o que conseguiu, mas não o entendeu, pois estava escrito em alemão. Foi aí que se deu conta de que ele não falava mais que cinco palavras de alemão, porém falava inglês fluentemente, mas isso não afastava dele o receio crescente de não conseguir se comunicar bem com alemães e romenos. A senhora passou e encaixara-se na fila do corredor, que já começava a andar. O homem com o notebook, Lorenzo já o avistara, estava no começo da fila.
Quando o último passageiro da fila estava passando ao seu lado, Lorenzo levantou e pôs-se atrás dele. Não muito demorou, já estava fora do avião, caminhando pela rampa de acesso que ligava o avião ao aeroporto. Uma sensação estranha percorreu-lhe o corpo; não sabia exatamente o que era. Enquanto andava, vasculhou seu interior, tentando encontrar o que seria aquilo tudo. Sabia que era um misto de emoções, um pouco de alegria, mais um pouco de excitação e talvez remorso, afinal, Lorenzo nunca havia viajado para fora do país e agora, tão distante, sentia-se mal, culpado por não ter dado maiores explicações aos seus pais. Sentia-se inseguro, não sabia quais surpresas esperavam por ele.
Pôs os pés dentro do aeroporto. Agora, teria de voltar à realidade, esquecer o ocorrido dentro do avião e deixar de lado seus devaneios. Olhou para direita, não havia mais para onde seguir, havia apenas uma parede. Olhou para esquerda, um corredor. Seguiu por ele, juntamente com todos os outros passageiros de seu vôo. Notou que as placas estavam todas escritas em dois idiomas: inglês e alemão. Obviamente, como em todo aeroporto havia uma tradução para o inglês, mas e nas ruas, será que haveria? E na Romênia, como seria?
Chegando ao fim do corredor, Lorenzo encontrou-se na ala do desembarque. Havia ali as esteiras rolantes que traziam as malas, mas como ele faria conexão até a Romênia, passou-as. Atravessou a porta de vidro que dividia a ala do saguão. Foi procurar informações.
Eram 13 horas no seu relógio de pulso, mas ele ainda estava com o horário do Brasil! Estúpido. Olhou em volta e viu um relógio de ponteiros, dependurado no teto por uma espessa corda de aço. Eram 18 horas. Mas como 18 horas? Quando desembarcara do avião, o sol ainda brilhava forte. Seria o horário de verão? Essa era uma pergunta a se fazer assim que conseguisse alguém para orientar-se.
Andou pelo saguão, procurando algum posto de informações. À sua volta, pessoas iam e vinham tagarelando em alemão. Aquilo soava tão estranho a Lorenzo! Avistou ao longe um balcão vermelho onde havia quatro pessoas. Em cima dele, havia uma placa também. Deduziu que fosse um local para conseguir informações, mas apenas deduziu. A visão de Lorenzo já não era a mesma. Mesmo com óculos, enxergava mal. Aproximou-se e para a sua felicidade, na placa estava escrito “Informationen/Information/Informaciones”. Duas moças estavam atrás do balcão e um casal estava à sua frente. Falavam em francês e tentavam algum diálogo com as moças. Rezou para que elas o atendessem em inglês. Disse:
- Bom dia, eu preciso de uma informação.
Para sua surpresa, -- ou talvez nem tanta -- a moça, loira, de intensos olhos azuis e maquiagem não muito pesada neles, respondeu-lhe, igualmente em inglês:
- Sim, em que posso ajudar?
- Erm... – Aqueles olhos o fitavam de tal forma, de repente Lorenzo perguntou-se o que estava fazendo ali, buscando informações. Ficou confuso, sua cabeça começou a doer e não achava palavras. – Eu acabei de... de chegar... chegar do Brasil, estou indo para a Romênia e preciso saber onde espero o vôo e a que horas devo embarcar.
- Desculpe-me senhor, mas o senhor disse que faria escala para a Romênia?
- Sim.
- Deve ter havido algum engano.
- Engano?
- Sim, este aeroporto não faz escalas para a Romênia, sinto muito.
Como o aeroporto não fazia escalas? Estava escrito em sua passagem. Lembrava-se de ter conferido cada detalhe dos vôos, aeroportos e tudo mais em casa. E estava tudo certo.
- A senhora tem certeza de que este aeroporto não faz esse tipo de escala? Olhe, estas são as passagens...
- Sim, tenho absoluta certeza. Não preciso conferir suas passagens.
Não... Não estava tudo certo. Estava tudo de acordo com o que o Jornal entregara a ele. Era isso, então? Mandaram-no para a Alemanha, sem passagem de volta, com uma passagem falsa para a Romênia. Se não havia passagem para a Romênia, também não havia apartamento algum lá, muito menos filial. De fato, eles conseguiram, o afastaram totalmente. Malditos!
- Bom, deve ter havido algum engano com as minhas passagens... Desculpe-me. Ah, só mais uma pergunta: há horário de verão na Alemanha?
- Sim, há. Temos sol até às 21 horas, mais ou menos. Mais três horas de claridade, aproximadamente.
- Uh, obrigado.
- Não tem do quê. – Disse a moça, que piscou os olhos.
Lorenzo teve a impressão de que durante a conversa, ela só piscara agora. “Só me faltava essa... Além de não ter lugar pra onde ir, fico vendo coisas. Claro que a moça piscou outras vezes, Lorenzo, claro! Você que não reparou. Você está cansado, Lorenzo, cansado... Preciso arranjar um local para passar a noite, ou ir de ônibus para a Romênia.” Pensava Lorenzo. “Mas antes de tudo, preciso voltar para a ala de desembarque e apanhar meus pertences...”
Carregando sua blusa, dirigiu-se a ala de desembarque, sem notar que continuava sendo observado pela moça do balcão de informações. Por hora, Lorenzo estava confiante. Conseguiria dar um jeito na situação antes da noite chegar. Achava que uma boa noite de sono acabaria com esse seu cansaço e dor de cabeça. Mas ele estava completamente errado.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Capítulo II

Não sabia qual lugar estaria sobrevoando. Já saíra do Brasil? Sim, provavelmente. Lembrava-se de ter ouvido o piloto dizer algo a respeito das fronteiras do país e sabia que ainda levaria mais quatro horas para a escala em Berlim, na Alemanha. Depois disso, havia ainda por volta de uma hora e meia para pousar em solo romeno. Estava cansado de ficar sentado. Seu assento ficava à esquerda do avião, bem ao lado do corredor. O homem ao seu lado direito trabalhava duro usando o notebook, mas o que ele realmente fazia não interessava a Lorenzo nem um pouco. À sua esquerda, com o intervalo de um banco, uma senhora dormia.
O tédio imperava; Já fizera palavras-cruzadas, vira TV, ouvira música e lera, mas nada parecia fazer o tempo passar. A poltrona era confortável, porém ele já estava cansado e sentia as pernas adormecidas. Resolveu, então, que tentasse ao menos dormir um pouco, coisa que não conseguiu fazer na noite passada. Inclinou sua poltrona alguns palmos para trás, encostou a cabeça e de um modo absurdamente ridículo, contou carneirinhos.
- Senhor? Senhor? Ahn... Senhor? – Cutucava-o gentilmente a aeromoça.
Abriu os olhos. Ali na sua frente estava uma das aeromoças, com cara de pacífica compreensão que todas elas aparentam ter, cutucando-o levemente o ombro.
- Uhn? – Foi o que conseguiu pronunciar, ainda sonolento.
- O senhor está bem? Quer dizer, está tudo normal? – Largou seu ombro.
Apesar de achar a pergunta estranha, respondeu:
- Sim, estou. Mas por quê? – Olhou em volta e percebeu que a maioria dos passageiros o olhava num misto de curiosidade, repreensão e pavor.
- Como assim? Por quê? – Prosseguiu a moça. – Não se lembra do que fez há poucos minutos?
- Sim, lembro. Estive dormindo, até que agora você veio e me acordou.
- Acho que não é bem isso. O senhor está, por acaso, brincando comigo? – Irritou-se a aeromoça.
Lorenzo ficou confuso. Afinal, se não estava ali dormindo, o que fez? Como fez? E o pior de tudo: fez sem perceber?
- Não, estou falando sério. – Ele tentava manter a calma. – Não me movi desta cadeira desde que adormeci, o que já faz um bom tempo... Que horas são?
- Onze e cinqüenta e três, senhor. Faz alguns minutos, já. – A expressão da aeromoça tornou-se um pouco mais séria. – O senhor levantou, dirigiu-se ao banheiro da aeronave que estava ocupado e se pôs a esmurrar a porta fechada. “Preciso entrar no banheiro. Quero usar o banheiro.”, foi o que o senhor disse, quer dizer, o que o senhor gritou.
- Eu? – Lorenzo ficava cada vez mais sem entender nada. – A senhora não está me confundindo, ou coisa parecida? Estive o tempo todo aqui, dormindo.
- Não... – A moça olhou em volta. – Era o senhor, mesmo. Até me dirigi ao senhor e informei-lhe que havia outro banheiro na aeronave, mas o senhor nem deu atenção. Deu mais alguns murros na porta e desmaiou. Caiu no chão. Chamei, então, os outros comissários que o colocaram no seu assento de volta e desde o acontecido estou aqui do seu lado, chamando-o.
Como assim, desmaiara? Lorenzo não tinha lembrança alguma disso. Só se lembrava de ter sonhado com um banheiro... Sim, um banheiro de avião! Sonhara com isso. Mas então não fora sonho? Ele estava confuso. Se tivesse desmaiado mesmo, era capaz que tivesse esquecido o que fizera. Nunca tinha desmaiado antes, não sabia como era. É, talvez tivesse sido isso mesmo. Desmaiou e esqueceu o que fez. Só havia esta explicação.
- O senhor está bem? Caso contrário, podemos providenciar assistência médica... Aqui no avião nossos recursos são limitados, mas logo que pousarmos em Berlim o senhor pode ter maior assistência.. – Pôs-se a explicar a aeromoça, mas Lorenzo interrompeu-a:
- Não, não... De forma alguma. Estou bem, obrigado. Acho que ao desmaiar devo ter-me esquecido de que levantei. Por favor, peça desculpas ao passageiro que estava no banheiro por mim.
- Está certo, então. Qualquer coisa o senhor pode chamar qualquer um de nós. Ah, só uma última pergunta: O senhor costuma desmaiar? – Quis saber a aeromoça.
- Não, na verdade, nunca desmaiei.
- Uhn... Bom, tudo ok. Com licença. – E retirou-se.
Lorenzo levantou o encosto da cadeira. Estava agitado demais para voltar a dormir. Mesmo já tendo achado explicação para o que acontecera, não podia deixar de pensar no caso. Era estranho. Percebeu que quase imediatamente, a maioria dos passageiros que o fitava foi virando-se e voltando a fazer o que quer que fosse que faziam. Alguns outros ainda o olhavam, mas depois de alguns minutos, desistiram.
Olhou para a direita. A senhora estava agora acordada e lia um livro que ele não conseguiu distinguir o nome. À sua esquerda, o homem continuava trabalhando incessantemente no seu notebook.
“Louco”. Pensou. “Devo estar ficando louco”. Tentou distrair seus pensamentos assistindo TV, mas não obteve sucesso. A descrição da cena que a aeromoça lhe dera não saía de sua cabeça, estava grudada nele como um chiclete na calçada gruda em seu sapato. Meia hora se passou até que o comandante anunciasse que ainda faltaria cerca de uma hora para pousassem em Berlim.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Capítulo I

Era fim de madrugada, começo da manhã. Hora característica do dia em que o sol ainda não raiara, porém sua luminosidade já é percebida. Tal luz iluminava o quarto, entrando por uma janela semi-aberta, destacando a silhueta de um homem magro, de cabelos ralos, arqueado à beira de uma cama de casal.
Ele se contorcia não com muita violência, mas com grande incômodo. Sua cabeça doía como nunca, seu corpo suava como o de um maratonista. O clima daquela manhã de Junho era ameno e confortável, mas Lorenzo pouco ligava para isso -- e outras tantas coisas -- durante estes espasmos.
Levantou-se, e com um imenso esforço para se manter de pé sem ir ao chão, pôs-se a descer as escadas para o piso térreo em direção à cozinha. Procurou seus comprimidos de dor de cabeça, que pouco lhe adiantavam ultimamente. Olhou o relógio. Cinco horas e quarenta. Lembrou-se da sua viagem marcada para hoje e pouco se animou em pensar nos dois anos que passaria na Romênia. Ah, como gostaria de ter dormido mais um pouco.
Não havia nada que prendesse Lorenzo no Brasil. Nem família, namorada ou amigos. Tinha sim, amigos e família, mas não os considerava nada mais do que conhecidos. O problema estava em, portanto, saber que tal viagem que fora declarada como “a trabalho”, não passava de uma desculpa para afastá-lo de seu serviço. Se o demitisse, o Jornal gastaria com ele, então a melhor solução era o afastamento. Lorenzo reconhecia que faltava com freqüência, mas o que poderia fazer em face de suas dores?
Com um gesto banal e cotidiano de como quem acena dizendo “Olá!”, ele engoliu seus comprimidos. Eram amarelos e de um tamanho razoavelmente grande e, para Lorenzo que nunca gostou de remédios, era fácil encará-los como simples jujubas.
Subiu as escadas do mezanino, passou pelo seu quarto, onde arremessou a bermuda que vestia à cama, rumando para o banheiro. “Quem sabe assim passe”, disse para si mesmo, ligando o chuveiro e pondo-se embaixo dele.
A água quente caía sob a cabeça. Em poucos instantes sentia-se relaxado e permitiu que sua mente vagasse pelos pensamentos que bem entendesse; isso não importava. Um certo conforto o envolvia, nada mais em seu corpo oferecia resistência. Esqueceu-se.
O rádio-relógio tocou. Levou um susto. Que horas seriam? Quanto tempo teria ficado ali? Seis horas e cinqüenta. Havia passado quase uma hora n’água! Dormira? Não, afinal, estava de pé, o cabelo estava lavado e a barba estava feita. Será que ficara tão alheio que fizera tudo sem notar? Era bem provável que sim. Mas quem ligava? O vôo saía às oito e se não corresse, certamente o perderia. Desligou o chuveiro, saiu do banho e se enxugou. Foi para o quarto.
Procurou o que vestir. Não podia colocar nada muito pesado, afinal, era verão no hemisfério norte. Optou por seu velho jeans, uma camiseta e uma blusa de lã igualmente pretas e seu All Star azul. Não penteou os cabelos, sabia que era perda de tempo; Mal havia cabelo para pentear, e além do mais, sempre gostara dele ligeiramente desarrumado.
O taxista viria pegá-lo às sete, afinal morava próximo ao aeroporto; Não levaria mais que vinte minutos no trajeto. Restava-lhe pouco tempo. Conferiu mentalmente a bagagem, apanhou o celular, fechou a janela e desceu para a sala.
Ali, sentado no sofá, escreveu dois bilhetes. O primeiro, à sua família, escreveu:

"Caros parentes,
Saí de viagem para a Romênia, onde passarei dois anos. Talvez as coisas melhorem por lá. Ao chegar, ligo para vocês. Desculpem não avisar antes.

Abraços, Lorenzo."


O segundo bilhete seria um pouco mais extenso, destinado à empregada. Era uma moça jovem e realmente bonita e perspicaz, mas pela “falta de sorte”, como ela mesma dissera a ele um dia, não obteve nada mais significante na sua vida. Lorenzo gostava dela, mesmo percebendo que ela o evitava de uns tempos para cá. A moça viria na próxima segunda-feira, com certeza veria o bilhete. Seus pais, que viriam amanhã para o almoço, também veriam o deles. Escreveu:

"Gabrielle,
Espero que esteja bem. Como já sabe, fui viajar. A previsão é que fique fora por dois anos, mas não é certeza. Caso haja algum imprevisto, entrarei em contato e darei as orientações necessárias.
Por favor, venha trabalhar normalmente. Onde quer que eu esteja, depositarei seu salário.
Caso meus pais procurem por mim, diga que não sabe mais que eles mesmos."

Com Carinho,
Lorenzo.


E guardou o bilhete no armário dela.
Às sete e doze, o táxi estava parado em frente ao número 735 e Lorenzo entrava nele. Deu uma última olhada para sua pequena casa, suspirou e saíra, rumo ao futuro.